segunda-feira, maio 17, 2004

Fantasmas do passado

Viajava num desses expressos rodoviários que de 'expresso' só têm o nome.
Nos 130 Km de percurso entre as duas cidades fez três escalas... mas isso será para um outro post.
Normalmente aos fins de semana viajo rodeado de turistas incautos e universitários, por isso estranhei que o autocarro estivesse quase cheio de mulheres de todas as idades, cores e línguas, acompanhadas de crianças.
Como para mim o dia tinha começado às cinco da manhã, dormitei e acordei surpreendido pela primeira paragem e pelo movimento de saída da maioria dos passageiros.
Alcoentre. Visita de sábado. Prisão velha, guardas prisionais.
Revi-me com seis anos, calções e chapéu 'inglês'.
(lembram-se do chapéu do Guilherme? Sim esse dos livros!)
A visita quinzenal ao meu pai.
Tenho poucas memórias até aos meus 10 anos, mas fui surpreendido pelas imagens quase nítidas dessas visitas. 1967, 68, 69 ...
A viagem, a espera, as 'lembranças' para o senhor director e para o chefe dos guardas, o escritório e a chegada do meu pai na sua farda cinzenta.
Já era díficil ser o único da turma cujo pai não vivia em casa, mas ter o pai preso era uma humilhação permanente.
Só mais tarde percebi que a reacção de alguns pais de colegas e amigos em relação à minha presença, eram ditados pelo repúdio ou pela solidariadade em relação à situação do meu pai. Também eu era culpado.
Foi duro, passar de 'classe média' a 'classe abaixo da média'.
Nós não podemos! O dinheiro não chega!
Mas pior era imaginar o quotidiano do meu pai. Li sobre os presos e as prisões.
Sofri. Sonhei. Cresci.
Liberdade condicional. Mas o meu pai não voltou para casa.
O cadastro que acompanha o antigo preso. Trabalho condicional. Vida condicional.
A distância, mais emocional do que física, a aumentar.
Assim que pôde o meu pai saiu do país.

Quase quarenta anos depois pouco mudou na Tugulândia.
A vingança e o estigma social em vez da punição e reabilitação.
Claro que o discurso e a forma mudou. Mas no fundo?
Péssimas instalações. Abuso e corrupção.
Desarticulação da família do preso. Reabilitação quase impossível.
Mais especialitas, mais doutoramentos, mais funcionários, mais fundos.
Resultados semelhantes. Disso somos culpados, todos.

Ao ver aquelas crianças a dirigirem-se aos portões verdes da minha infância, sofri.
Sejam fortes, sonhem e estudem. Contra tudo e todos.

bjinhos & abraços


Comments:
Muito bem. As duas últimas frases, para todos.
 
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